Por Passa Palavra
Nos últimos meses têm sido cada vez mais frequentes em algumas regiões do Brasil relatos de passageiros, especialmente mulheres, que ao pegarem carona com um Uber, alegaram ter sofrido o “golpe do gás”. Consiste numa situação em que a janela do carro está totalmente fechada, o motorista aciona um dispositivo que supostamente libera um gás com propriedades sedativas, pois os denunciantes têm relatado tonturas, náuseas e outros sintomas físicos no interior desses veículos.
O objetivo seria imobilizar a vítima e, tendo-a desacordada, roubar seus pertences ou estuprá-la. Esse tipo de crime está longe de ser solucionado, ficam vários questionamentos no ar. Por que o “gás” não imobiliza também o motorista do veículo? Como o sedativo faz efeito tão depressa e simplesmente pelo contato com a pele?
Procuramos investigar esse fenômeno com outro exemplo que conhecemos: há 5 anos atrás circulou por Buenos Aires a notícia de que estava sendo utilizada Burundanga em transportes públicos para sedar vítimas. A substância se assemelharia ao que brasileiros chamam de “chá de lírio”, pois seus efeitos são verdadeiramente incapacitantes. No entanto, a droga precisa ser ingerida para produzir seus efeitos, então não há indícios claros de que seja algo além de uma lenda urbana, dentre tantas que circulam em canais sensacionalistas e aplicativos de mensagens instantâneas.
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Por que este caso nos chamou atenção? Não seria incorreto afirmar que a cidade é um ambiente hostil para mulheres e que estas vivem sob risco constante, mas, principalmente tratando-se de um caso tão delicado, o pânico mais atrapalha do que ajuda na resolução de conflitos. Não foram poucos aqueles que notaram que os efeitos sentidos por passageiros em transportes eram similares ou lembravam os de ataques de pânico, síndromes de ansiedade ou simplesmente surtos psicóticos. Mesmo a possibilidade de entrar sozinha no carro de um desconhecido pode ser desafiadora diante de tantas notícias de barbaridades cometidas aqui e acolá. É assim que as lendas urbanas ganham força, um suposto caso puxa o outro, e essa rede de denúncias ganha aparência de realidade.
E por que este fenômeno é perigoso? Mulheres são frequentemente desacreditadas quando expõem suas denúncias, e seus casos dificilmente são solucionados. E devido ao sentimento de impunidade difundem-se cada vez mais os “escrachos” públicos contra motoristas de aplicativo que supostamente teriam tentado sedar passageiros. Em muitos casos, a denunciante publicou em redes sociais o nome do motorista, a placa e o carro. Se em uma primeira linha de ação as denunciantes já denunciam o trabalhador para o aplicativo, que vai investigar o caso, em um segundo momento mancham sua reputação perante a opinião pública, que o reconhece como um estuprador em potencial.
Até hoje, não se conhece nenhum caso de condutor condenado por ter liberado um suposto “gás” dentro do veículo, embora de fato ocorram assédio e estupros em transportes públicos ou particulares. Ano passado, inclusive, foi desmentido um boato de que pessoas estavam sendo sedadas com um “perfume do mal”. Mas denúncias semelhantes não param de crescer.
Em Porto Alegre, uma passageira foi indiciada por denunciação caluniosa por ter acusado um motorista de tentar estuprá-la. Durante a perícia, não foi encontrada nenhuma substância em posse do motorista, ou mesmo instalada no carro, que pudesse “dopar” a vítima. Ainda assim, a paranoia fez com que a passageira se jogasse do carro em movimento e tivesse de ser hospitalizada.
No Rio de Janeiro, houve um escracho e denúncia formal de um motorista acusado de ter liberado um spray no carro para dopar a vítima. O laudo da Polícia Civil identificou que o tal spray era de Álcool 70%, para prevenção contra o coronavírus, o que foi confirmado pelo denunciado. Antes mesmo da queixa formal, o motorista já havia sido exposto em redes sociais como “assediador” e teve sua foto divulgada. E não param por aí as denúncias.
Frente a tantos casos, que podem ser motivados por paranoia ou quaisquer outros receios, trabalhadores estão sendo submetidos a investigação criminal e linchamento público. As mulheres são com muita frequência silenciadas quando denunciam assédios e estupros, e isso gera um sentimento de impunidade, mas as denúncias infundadas mais causam pânico do que solucionam um problema coletivo de segurança pública e proteção às mulheres.
Vale lembrar, também, que existe um forte ressentimento entre motoristas de aplicativos e taxistas, estes últimos muitas vezes promovendo a desconfiança com relação aos primeiros, sendo frequentemente levantado o fator da segurança. Na esteira desse processo, crescem os grupos de WhatsApp e aplicativos de entregadoras mulheres, para promover a segurança entre motorista e passageira, o que lembra um pouco o dilema dos vagões exclusivos para mulheres. As cicatrizes do machismo têm forçado cada vez mais a desconfiança geral de espaços compartilhados com os homens, mas sendo a interação com eles uma condição indispensável para superação do machismo, como superar o isolamento desses processos provocados pelo escracho?
As fotografias que ilustram este artigo são da autoria de Vladimir Proskurovskiy.
Gostaria de parabenizar o passapalavra por este excelente texto. É um texto necessário, importante e, por conta do irracionalismo reinante, bastante corajoso. Não me surpreenderia se algumas feministas se sentissem incomodadas com este texto, pois mostra a falsidade que é a suposta “guerra dos sexos”, que a fragmentação é limitada e não aponta para a resolução do problema real que é a subordinação das mulheres.
Apenas gostaria de indicar um texto ao passapalavra, pois é importante refletirmos também se a palavra correta é realmente “machismo”. As palavras tem seus significados e devemos refletir sobre qual a melhor palavra que descreve o problema enfrentado pelas mulheres. A palavra “machismo” aponta sempre para o homem e retira o caráter social totalizante envolvido na relação homem e mulher. Por isso, deixo aqui esta indicação deste texto que se chama “machismo” ou “sexismo”? http://coletivooitodemarco.blogspot.com/2016/03/machismo-ou-sexismo.html
O Passa Palavra lembra às leitoras e aos leitores que, tal como indicamos aqui, não publicamos comentários insultuosos.